quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O regresso do "laissez-faire…", por A. Marinho Pinho


O regresso do "laissez-faire…"
JN, 2010-07-18

A queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética conduziram a uma nova ordem mundial que pouco se compadece com as regras das democracias tradicionais. Na euforia ultra-liberal da globalização em curso, os novos fisiocratas organizaram tudo em benefício das empresas e dos capitais. Por outro lado, a intervenção na Jugoslávia (nomeadamente, o bombardeamento de Belgrado e, em particular, da sua estação de televisão), bem como a invasão do Iraque, ou a guerra na Tchechenia vieram demonstrar que a nova ordem nada tem a ver com a vontade democrática dos povos e que já não se olha a meios para atingir fins.

Neste quadro muitos mitos se desfazem e novos paradigmas emergem.

Os chamados direitos sociais dos trabalhadores, representados no imaginário da esquerda tradicional como conquistas heróicas do movimento operário, são esvaziados ou aniquilados sem qualquer resistência. A sua imolação faz-se no altar da actual crise económico-financeira mundial, curiosamente, a mesma causa que ditou o seu nascimento.

Com efeito, a maioria dessas «conquistas» surgiu depois da grande crise económica de 1929 que se evidenciou com o célebre crash da Bolsa de Nova Iorque, a que se seguiu a falência de milhares de empresas e a miséria de milhões de pessoas. Até então acreditava-se que o mercado (a economia) era regulado por aquilo que um economista inglês, Adam Smith, chamara (num livro intitulado A Riqueza das Nações, de 1776) uma «mão invisível».

Como resultado da crise de 1929, iniciou-se a lenta construção do chamado Estado Providência, cujas bases teóricas já tinham sido lançadas por outro economista inglês, John Keynes, sobretudo com o seu livro, de 1926, sintomaticamente intitulado The end of laissez-faire, em que punha em causa o liberalismo e a sua teoria da «mão invisível».

Keynes defendia que o papel do estado não deveria resumir-se a ser o «guarda nocturno» do mercado, antes deveria intervir na economia, a fim de evitar que as crises económicas conduzissem ao colapso do sistema. Como essas crises são cíclicas e, portanto, previsíveis, o estado teria de tomar medidas a montante e a jusante delas, a fim de as prevenir ou atenuar os seus efeitos. Medidas de regulação da economia (disciplinando a concorrência, proibindo a cartelização, efectuando mesmo uma planificação indicativa da produção, etc.), mas, sobretudo, medidas de carácter social que, aumentando o poder de compra, alargassem o consumo e os mercados internos.

Foi assim que nasceram as primeiras medidas sociais que conduziram ao que se chama Estado Providência. Note-se que as primeiras férias pagas foram gozadas pelos trabalhadores franceses, em 1936, durante o governo da Frente Popular liderado por Léon Blum. Além de 15 dias de férias anuais, foi também instituída, pela 1ª vez, a semana das 40 horas.

Só que, hoje, não é só o estado providência que está em falência. Faliram também as ameaças revolucionárias ao capitalismo, sobretudo as de matriz bolchevique. Aliás, nunca se explicou bem por que é que um país semi-feudal, pré-capitalista, como era a Rússia do início do século XX, veio a ser o berço de uma revolução socialista, que, por definição, só teria condições históricas de sucesso numa economia tão avançada que a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as respectivas relações sociais de produção (entre o carácter social da produção e a propriedade privada dos meios produtivos) só pudesse ser superada dialecticamente com a apropriação colectiva dos meios de produção. Mas, paradoxalmente, naquela Rússia em que triunfou a primeira revolução socialista só havia miséria e servidão para socializar.

Assim, hoje, não é só todo o modelo keynesiano que está em crise e cujo fim se anuncia, são também os principais paradigmas ideológicos da esquerda do século XX.

Neste panorama, a política perdeu os seus referentes ideológicos e fulanizou-se. Os centros de poder e de decisão nacionais estão a transferir-se para instâncias supra nacionais (quando não para empresas globais) sobre as quais não há qualquer controlo democrático. Os estados estão a limitar-se ao velho papel residual de guardas-nocturnos de um mercado agora global e a democracia extingue-se lentamente, perante a estupefacção daqueles que disso têm consciência, sem que, aparentemente, nada se possa fazer nada para o impedir. As eleições já nada decidem, verdadeiramente, porque o que é importante aparece sempre decidido por instâncias supranacionais não democráticas.

O horizonte é plúmbeo.

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