segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Da Modernidade Técnica à Modernidade Ética

Estava a pensar nas consequências da aceitação em massa dos sinais de Modernidade, agora seguidos também pelos chineses e deixo aqui um texto muito bom, que faz uma análise profunda do mundo em que vivemos e sugere a importância da Modernidade Ética. Boa leitura

Da Modernidade Técnica à Modernidade Ética
Por Cristovam Buarque
Origem: Tribal Mind

I. A contestação da modernidade técnica

1. Os dois sustos do final do século: técnico e utópico

Até os anos 80, a preocupação dos estrategistas era com os meios técnicos para realizar objetivos predeterminados e generalizadamente aceitos. A partir das últimas décadas surgem dúvidas sobre os propósi-tos e os estrategistas passam a ter uma preocupação não apenas com os meios, mas também com a ética que define os objetivos.
Uma das causas desta mudança está nos dois grandes sustos que o final do século XX trouxe aos homens.

Primeiro, o susto positivo da imensa realização técnica realizada ao longo destes cem anos. Segundo, o susto negativo do fracasso em construir uma utopia, com base nestas técnicas.
Quando comparamos todas as criações técnicas disponíveis no fi-nal do século com as expectativas criadas há cem anos, percebemos que muito mais foi realizado do que se esperava. As mais radicais previ-sões do começo do século ficaram tímidas diante do que foi realizado. Ninguém imaginou que neste final de século o mundo estaria tão integra-do culturalmente, tão intercomunicado, tão rico, com tantas técnicas mé-dicas, de transporte, com tanto conhecimento científico.

Do ponto de vista técnico, muito antes de terminar, o século XX já tinha realizado e superado todas as expectativas que existiam no começo.

Ao mesmo tempo, quando se compara os sonhos utópicos imagina-dos há cem anos com a sociedade que foi construída nesse período, constata-se que a civilização não caminhou como se esperava. Em al-guns aspectos até se afastou da utopia desejada.

Do ponto de vista utópico, o final do século XX não se apresenta como um grande êxito civilizatório.

Nesses cem anos:

-a  engenharia industrial realizou maravilhas de automação, aumentou de uma forma inimaginável as escalas de produção, mas não ampliou substantivamente o tempo livre das pessoas e, quando ampliou, jogou milhões no tédio e na droga; não resolveu e até agravou o problema da escassez entre uma enorme parcela da população mundial, criou um sério desequilíbrio ecológico, gerou um desemprego crônico;

-graças à engenharia e à biotecnologia, a agricultura do século XX é capaz de produzir mais, em quase qualquer local, com muito menos trabalho, em melhores condições, com uma inimaginável produtividade, controlando a terra e as epidemias, não conseguindo ainda controlar o tempo, mas reduzindo muito seus efeitos, mas não resolveu e até acirrou o problema da desnutrição.

-ao mesmo tempo em que graças ao avanço técnico o homem conseguiu criar riquezas em níveis não imaginados poucas décadas atrás, a desigualdade se ampliou entre os homens e entre as nações;

-as ciências medicas conseguiram quase que dobrar a vida média das pessoas, conseguiu adiar o envelhecimento, fazer transplantes e prótese de órgãos, mas não conseguiu fazer com que estas vidas mais longas fossem certamente mais felizes;

-ao mesmo tempo em que conseguiu integrar o planeta, o século XX desintegrou a sociedade humana, entre países e entre gru-pos sociais dentro de cada pais.

O que se percebe é que a modernidade técnica foi plenamente realizada, mas que a modernidade utópica não foi realizada em nenhuma parte do Planeta.

2. O susto ético

Independentemente da corrente social, todos os analistas do final do século passado e da primeira metade deste viam as técnicas como a panacéia para a construção da utopia desejada por todos. Os economistas neoclássicos mostravam como isto ocorreria graças ao livre jogo das forças produtivas reguladas pelo mercado. Os marxistas defendiam que isto ocorreria por revoluções sociais cuja finalidade era na verdade liberar o avanço técnico das amarras sociais. As criticas e os alertas de risco do avanço técnico eram restritos a pequenos grupos de pessimistas, que não dispunham de base para comprovar seus temeres.

É só a partir dos anos 60, graças a quatro fatores, que surgem as primeiras dúvidas concretas sobre a eficiência civilizatória das técnicas em si:

-primeiro, a ocorrência de fatos como a tragédia de Minamata, no Japão, mostrando o risco das técnicas; o que era restrito ao risco da explosão nuclear, em caso de guerra, passa a ser também uma preocupação em tempos de paz devido ao processo industrial;

-segundo, a disponibilidade de dados estatísticos em escala mundial, a elaboração de modelos matemáticos com sistemas globais e o potencial de processamento de dados pelos grandes computadores permitiram observar a gravidade dos efeitos ecológicos e os limites ao crescimento econômico;

-terceiro, a consciência do reduzido espaço da Terra fotografada de naves espaciais;

-quarto, a constatação da crescente desigualdade que se manifesta no mundo a partir dos anos 80, com a integração económica e cultural internacional e as desintegrações sociais nacionais.

Mesmo assim, no final do século, com a derrocada dos regimes comunistas, com o conspícuo enriquecimento europeu, cresceram, em vez de diminuir, os sonhos de uma sociedade de consumo em escala mundial, através do mercado, pelo neoliberalismo. Apesar de contradizer a realidade, a palavra modernidade retoma força como ideologia dominante das elites do mundo inteiro.

Salvo que ocorra uma rápida revolução tecnológica em setores não previsíveis como redução do custo dos equipamentos industriais, barateamento dos serviços de recuperação ambiental inclusive em escala atmosférica e substituição dos recursos naturais energéticos que mude toda a estrutura produtiva, de consumo e mesmo social, todas as análises mostram que é impossível distribuir a toda população mundial os beneficias da modernidade atingida pelos países ricos.

A realidade ecológica, que começa a esgotar certos recursos, como o petróleo, poluir o meio ambiente, depredar toda a biosfera, inclusive a camada de ozônio, mostra, sem dúvida, que sem uma mudança do padrão tecnológico de produção, que não está a vista, será impossível ampliar significativamente a produção. A simples incorporação da população de um único pais, como o Brasil, nos padrões de consumo dos EUA, já produziria uma escassez de petróleo e uma dramática ampliação do buraco da camada de ozono. A realidade financeira mostra também que não há recursos em capital suficiente para ampliar a produção, gerar emprego para os quatro bilhões de excluídos. A simples incorporação dos 60 milhões de miseráveis brasileiros ao nível de pobreza, 2.000 dólares de renda ao ano, nos padrões tecnológicos atuais, exigiria um investimento de 340 bilhões de dólares, inexistentes no mundo. O fácil trabalho de recuperação da Alemanha Oriental já exige do mundo um capital que a Alemanha não dispõe, sendo obrigada a elevar sua taxa de juros para carregar recursos no exterior; o déficit norte-americano força os EUA a atrair capital do mundo inteiro; a Rússia, que é a menina dos olhos do Ocidente, luta desesperadamente para tentar ob-ter 20 bilhões, em dez anos.

É impossível copiar, para todos, os padrões de consumo das populações ricas do mundo. Ainda mais grave, a continuação do processo de modernização, no seu sentido técnico do século vinte, levara a uma crescente desigualdade, ao ponto de criar-se, como já há indicações, dois tipos diferenciados biologicamente de seres humanos.

Talvez este seja o maior susto. Tão grande, que procura-se evitar de reconhecê-lo.

Depois de 2.000 anos de cultura cristã, de 300 de iluminismo, de cem anos da abolição da escravatura oficial, o homem acostumou-se à idéia de igualdade de direitos entre todos os seus semelhantes.

Mas, enquanto é recusada teoricamente, ela está sendo construída na prática. A Europa, que na busca da igualdade realizou a maior migração em toda a história, começa a proibir a entrada de imigrantes oriundos de países pobres. O movimento neonazista se espalha, com muita tolerância de parte dos trabalhadores que defendem seus direitos e privilégios contra os novos imigrantes. Os EUA, que receberam milhões de imigrantes, dando-lhes um tratamento igualitário nas oportunidades, freiam a imigração para os milhões de pobres latino-americanos e caribenhos.

Mas a segregação não se dá apenas entre países ricos e países pobres.

Os ricos dos países ricos aceitam com naturalidade e sem racismo os oriundos dos países pobres, desde que provem serem ricos.

Dentro dos países pobres, os ricos recusam aproximação com os seus compatriotas pobres. No Kualte, defendido como símbolo de democracia pelos países ricos, os descendentes de imigrantes jamais obtêm os direitos civis nacionais. No Brasil, as parcelas de classes média e alta estão armadas, cercadas, protegidas contra os pobres, em sistemas em nada menos nazis do que aqueles usados pelos europeus.

Forma-se assim, no mundo integrado, uma nação formada com os ricos do mundo inteiro, não importa a distancia em que estejam fisicamente; e separados dos pobres do mundo inteiro, não importa a aproximação que estejam fisicamente.

O mais grave é a observação de que estes dois caminhos, de aproximação e desagregação, se aprofundam com velocidade crescente, levando à clara possibilidade de uma distinção entre os homens, definitivamente, através da biologia que se forma com o tempo.

A diferença de hoje entre um habitante do mundo moderno, na Europa ou no Brasil, e um habitante do mundo atrasado, na Somália ou no Brasil, é muito maior do que era entre escravos e patrícios na Grécia Clássica, ou entre o Rei Sol e os camponeses de seu tempo.

A diferença é que os patrícios pregos não eram hipócritas e se assumiam superiores, diferenciados, em relação a todos os bárbaros.

Influenciados pelo cristianismo e pelo iluminismo, os habitantes ricos do mundo moderno negam-se a reconhecer que a civilização caminha em direção à explicitação da segregação, do apartheid. Mas, não deixam de percorrer este caminho, usando a técnica e em breve a biotecnologia, no sentido de consolidar esta diferença ao ponto de eliminar outra vez, dentro de décadas, o constrangimento da diferenciação, já que a diferença existirá de fato.

A única forma de continuar o rumo da modernidade técnica é fazer duas nações à parte. Duas universalidades separadas.

Isto se observa no dia a dia do Planeta e de cada pais. Nos países ricos, o freio à imigração, o assalto aos refugiados. No Brasil, a solução para problemas como arrastão.

3. 0 susto da lógica

Esta hipótese assusta e não satisfaz imediatamente, porque contradiz os princípios básicos da modernidade do século XX, segundo a qual o avanço técnico era não apenas o caminho da utopia, mas um caminho inexorável para a utopia.

Além destes sustos óbvios para o observador, o final do século permite um outro susto, não tão óbvio, para o analista que procura uma explicação para esta contradição. É o susto de imaginar que o fracasso na construção da utopia é decorrente direto do êxito na construção técnica.

Ao avançar, a técnica foi formando a sociedade conforme os moldes que melhor lhe serviam. Mas, diferentemente do que imaginou Marx, em vez de a técnica forçar uma igualdade para continuar se desenvolvendo, diante dos limites do crescimento, as técnicas serviram para implantar a desigualdade, como forma de continuar evoluindo.

O que aconteceu a partir deste século é que o avanço técnico deixou de ser um elemento intermediário na construção das utopias, passando a ser a própria utopia, em si. Os sistemas sociais contemporâneos existem e se estruturam para viabilizar o avanço técnico.

A própria racionalidade económica foi organizada para justificar o avanço técnico, qualquer que fosse o resultado social. Os objetivos sociais foram subordinados à técnica. Para tanto, os valores éticos foram abandonados. Cederam lugar ao propósito estético representado pelas técnicas.

A sociedade contemporânea se organizou, portanto, seguindo uma hierarquia de símbolos da modernidade:
-a técnica, sendo o propósito, subordinou
-a racionalidade econômica, que subordinou
-os objetivos sociais, todos ignorando
-os valores éticos.

Para viabilizar o uso de técnicas depreciadoras de recursos e que exigiam concentração de renda:
-a economia foi organizada de maneira a não levar em conta os efeitos poluentes, nem atribuir valor à natureza;
-a pobreza foi vista como uma etapa cujos efeitos seriam eliminados quando a riqueza fosse ampliada;
-como isto implicava em tolerância com a miséria e com a destruição ecológica, os valores éticos que norteariam esta preocupação ficaram esquecidos.


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