sexta-feira, 2 de abril de 2004

Parques Urbanos-O texto do escritor Francisco Viegas

Por erros técnicos temporários,já resovidos, volto a colocar o texto do escritor Francisco Viegas. Destaco o fim do seu artigo: "um parque (...) precisa de árvores, guardas-florestais, respeito e silêncio. Isso é um parque."
Um parque da cidade
Francisco José Viegas, escritor

Há uma estranha ideia no ar sobre uma das raras manchas verdes na zona de
Lisboa, o parque de Monsanto. Essa ideia, vinda da Câmara de Lisboa, sobre a
"implantação" de uma "indústria de lazer" em Monsanto, causa arrepios mas
não surpreende muito.

Insistamos num ponto: Monsanto é um dos últimos lugares saudáveis de Lisboa
e, infelizmente, já com coisas a mais lá dentro. Portugal não gosta muito de
jardins, de parques ou de bosques (falámos do assunto na altura dos
incêndios do Verão passado, não foi?): quando os vê, ao longe, pensa em
transformá-los em "espaço humano" ou "humanizado". Tudo estaria bem se se
tratasse de melhorar os parques existentes, de "optimizar" o "espaço humano"
já existente, de criar observatórios do parque (lugares para que se
apreciassem as árvores, se ouvisse o vento, se pudessem ver as espécies
botânicas), de impedir a circulação desnecessária por dentro do parque.
Mas a ideia portuguesa (que os rumores vindos da Câmara de Lisboa e de
outras instituições que velam pelo nosso progresso confirmam) é a de que um
parque, um bosque, uma floresta são lugares para ocupar com "equipamento de
lazer" (restaurantes, feira popular, centros comerciais, seja lá o que for),
tudo zonas livres para serem destruídas. Essa ideia estapafúrdia não fez
nenhum dos parques mais belos do Mundo (da pequena montanha de Bergen ao
magnífico jardim botânico de Bali): só os destruiu paulatinamente, devagar
ou depressa, mas decisivamente. Em Portugal, então, nem é preciso muito:
espalhamos lixo e ruído com muita facilidade.
Um parque como o de Monsanto devia ser intocável numa cidade em ruínas,
poluída e desagradável. Quando escrevo "intocável" isso significa, também,
que devia ser entregue a quem percebe de parques e de florestas; e, se for
preciso, quer também dizer que o parque deve ser defendido das pessoas. Dos
"utentes", como agora querem dizer, e que já têm muito que usar por Lisboa
fora, cheia de "equipamentos". Até acho aceitável que parte do parque seja
encerrada de noite à circulação. Um parque como o de Monsanto deve ser
preservado para passeantes, observadores de pássaros, velhos, leitores
deitados na relva, bicicletas, fotógrafos, excursões de miúdos das escolas.
E até podia ter uma biblioteca, sim; e um observatório para astrónomos
amadores. Mas não uma feira popular, barracas de hambúrgueres e farturas, um
pavilhão de "desportos radicais", área de concertos ou parques de
estacionamento. E devia ter cancelas para proteger (dos automobilistas)
determinadas áreas.
O mistério que manda as administrações municipais explorar todas as zonas
livres de uma cidade ainda está por esclarecer. A ideia de "embelezar" os
jardins com "animação cultural e desportiva", então, é um anátema que
persegue as nossas cidades. Os portugueses (sobretudo essa classe chamada
"autarcas amantes do progresso"), mal vêem um bosque onde as árvores
crescem, o silêncio é possível e ninguém anda aos saltos, têm a tentação
superior de encher esse espaço de ruído, festas populares e palcos para
desfiles.
A velha ideia de que Monsanto é o pulmão de Lisboa não alegra ninguém; mas é
verdadeira. Num pulmão não se toca; mantém-se vivo. Protege-se de tudo.
Mesmo das pessoas. Sobretudo de pessoas que acham que um bosque, uma
floresta, um parque, precisa de "equipamentos". Se as pessoas querem
Monsanto para fazer lá o que fazem nas Docas, na 24 de Julho ou no Bairro
Alto, o melhor é dizer-lhes que isso é impossível. Que há uma medida da
decência que não vai a votos. Que a destruição do único bosque de Lisboa é
uma operação que não está sujeita a escrutínio popular.

Um parque como Monsanto precisa de árvores, guardas-florestais, respeito e
silêncio. Isso é um parque.

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